A argila foi colhida na beira do rio
e a memória dos dedos ainda
guardava a sensação fria e
gelatinosa da terra se
desfazendo diante da invasão do
corpo. Um corpo penetrando
outro.
Foi a primeira vez que se sentiu
no que sentia. Era humana mas
também era terra argilosa. Ou
ardilosa? Era a predadora mas
também a presa quando a terra
lhe escapava entre os dedos
tomando outra forma.
De volta ao cômodo onde cozia
as suas peças, depunha sobre a
mesa o cárcere da argila, o
balde.
Ia fraturando aos poucos o
monte dela, arrancando
pequenos nacos como se lhe
fizesse nascer filhos.
Sovava os montinhos fazendo e
desfazendo suas formas. E
nessa hora punha força
pensando em todos os seus
desafetos. Beliscões, murros,
socos certeiros. Cotoveladas
quando as mãos nada mais
podiam. Saía exausta, suada e
suja. Banhava-se no chuveiro
improvisado no quintal.
Depois ia pra rede matutar
enquanto o café tomava corpo.
Apanhava uma caneca e voltava
à massa. Agora ela a tratava
com delicadeza, moldando peças
pequenas e frágeis. Pensava no
marido.
No final da tarde, a mesa estaria
repleta de miúdas preciosidades:
brincos, anéis, pingentes
É o fogo
que sela o pacto entre o gesto e a matéria.
Chama que lambe, dança, atravessa,
traduzindo em brilho o que era apenas
espera.
No forno, suas dores viram esmalte.
Enquanto a queima dura, ela vigia
de longe, fumando e ouvindo o tempo
estalando no barro.
Ali, dentro, as peças endurecem.
Aqui fora, é o coração que amolece.
Ao abrir o forno, o bafo quente
lhe acerta como lembrança antiga.
As peças, vívidas, luzem sob a fuligem.
Ela as apanha como quem resgata filhos
perdidos no escuro.
No espelho da última joia — um broche —
reconhece os próprios olhos.
A mulher que moldou o barro
agora é barro moldado.
Ergue-se da mesa:
viva, vitrificada,
a obra final de suas próprias mãos.