Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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A OBRA DE SUAS PRÓPRIAS MÃOS

 

A argila foi colhida na beira do rio

e a memória dos dedos ainda

guardava a sensação fria e

gelatinosa da terra se

desfazendo diante da invasão do

corpo. Um corpo penetrando

outro.

 

 

Foi a primeira vez que se sentiu

no que sentia. Era humana mas

também era terra argilosa. Ou

ardilosa? Era a predadora mas

também a presa quando a terra

lhe escapava entre os dedos

tomando outra forma.

 

 

De volta ao cômodo onde cozia

as suas peças, depunha sobre a

mesa o cárcere da argila, o

balde.

Ia fraturando aos poucos o

monte dela, arrancando

pequenos nacos como se lhe

fizesse nascer filhos.

 

 

Sovava os montinhos fazendo e

desfazendo suas formas. E

nessa hora punha força

pensando em todos os seus

desafetos. Beliscões, murros,

socos certeiros. Cotoveladas

quando as mãos nada mais

podiam. Saía exausta, suada e

suja. Banhava-se no chuveiro

improvisado no quintal.

 

 

Depois ia pra rede matutar

enquanto o café tomava corpo.

Apanhava uma caneca e voltava

à massa. Agora ela a tratava

com delicadeza, moldando peças

pequenas e frágeis. Pensava no

marido.

No final da tarde, a mesa estaria

repleta de miúdas preciosidades:

brincos, anéis, pingentes

 

 

É o fogo

que sela o pacto entre o gesto e a matéria.

Chama que lambe, dança, atravessa,

traduzindo em brilho o que era apenas

espera.

No forno, suas dores viram esmalte.

 

 

Enquanto a queima dura, ela vigia

de longe, fumando e ouvindo o tempo

estalando no barro.

Ali, dentro, as peças endurecem.

Aqui fora, é o coração que amolece.

 

 

Ao abrir o forno, o bafo quente

lhe acerta como lembrança antiga.

As peças, vívidas, luzem sob a fuligem.

Ela as apanha como quem resgata filhos

perdidos no escuro.

 

 

No espelho da última joia — um broche —

reconhece os próprios olhos.

A mulher que moldou o barro

agora é barro moldado.

Ergue-se da mesa:

viva, vitrificada,

a obra final de suas próprias mãos.

 

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 06/07/2025
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