Adelaide Paula
A Literatura é o traje mais sofisticado que alguém pode vestir.
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Este ensaio nasceu da leitura da crônica Sou a babá da minha filha, escrita pela jornalista Waleska Barbosa, mediada pelas provocações psicanalíticas de Lélia Gonzales. O texto de Waleska nos atravessa a todas, de maneiras diferentes, porque nos vemos na mulher e na mãe preta. Mas não nos vemos só a nós nesse tempo aqui e agora. Vemos também nela os rostos das nossas Ìyá Mi, expressão da língua iorubá que pode ser traduzida carinhosamente por “minha mãe”, nossas mães, nossas mais velhas. Então, eu me reconheço porque vejo a minha mãe, mas também vejo a mãe dela, assim como as que vieram ancestralmente antes de mim. Mulheres que caminharam sobre a Terra, nossa Pacha Mama e, agora, habitam as nossas memórias.

O mito nos põe a pensar. Nosso inconsciente coletivo está repleto de imagens arquetípicas, míticas e, entre elas, a imagem da mãe. E para falar um pouco mais sobre ela, a mãe preta, chamo para a conversa Lélia Gonzalez, que em seu Por um feminismo Afrolatino brasileiro utiliza as ferramentas freudianas da psicanálise para nos mostrar que existe uma única mãe na cultura amefricana, a mãe preta.

Para Gonzalez, quando o senhor buscava uma mucama para exercer a função de “ama de leite”, trazia para dentro da casa grande o seu objeto de desejo inconsciente, ou como Lélia preferia dizer as “ memórias de saber insabido” com a qual compartilhava o título de “amo”. O trocadilho ama/amo não é uma mera coincidência. Não raro, muitas dessas amas carregavam no mesmo corpo o arquétipo da “mulata”. E, como nos contos de fadas eram, a um só tempo, borralheiras e cinderelas.

Então, ali, preso ao seio da sua ama, o infante brasileiro vai receber direto da sua boca, doses generosas de açúcar e afeto, ou seja, a criança vai beber pela primeira vez da cultura brasileira. Exercendo a função materna, a mucama, outrora a mulata, agora a ama nomeia o pai, afinal, quem nomeia o pai é a mãe, pois todos sabem — pai é uma ausência. Prova disso é o ditado popular que corre de boca em boca: “Filhos da minha filha meus netos serão. Filhos dos meus filhos serão ou não.” por meio da linguagem, que Lélia chama criativamente de pretuguês, a mãe preta subverte o projeto da supremacia colonialista. Esse ato de resistência sem alarde, se fazendo sujeita pela palavra inventada só podia ser movimento de mulher, e mulher preta, afinal “a mulher é a única que faz correr o sangue sem utilizar a faca.”

Ora, era necessário romper essa estrutura dissidente. Como assim, uma jovem mucama proibida, domésticada e de estimação vai redefinir os destinos da nação? Não. Tirem a criança dos braços dela. Mandem-na para a solidão. Nem o amo, nem infante, ninguém. Denegação.

Pronto, está fundada a neurose advinda do amor interrompido, pois todo amor está fundamentado numa pulsão sexual cujo fim foi interrompido, cortado e transformado em outra coisa.

É por isso que a mãe preta, Waleska, mãos dadas a sua Morena branca, causa tanta irritação. São os sintomas da neurose que permanecem para lembrar o que não se curou. Cada mãe preta puxando pela mão seu infante branco carrega o terror do objetificado se tornar sujeito de quem o assujeitou. É por isso que ainda se diz: “Age como se tua mãe fosse uma só”

Adelaide Paula

29/06/2023

 

 

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 02/07/2023
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